REDOL EM PORTO MANSO

(Prémio Alves Redol para estudantes universitários, 1982 - ganho por José Gomes Quadrado)

INTRODUÇÃO

A história de um país será tanto mais conseguida, quanto maior e melhor for o conjunto de monografias das suas várias regiões ou sub-regiões, incluindo as diversas actividades económico-sociais que aí se desenvolveram no decorrer dos tempos. A falta desta informação é uma característica de algumas das zonas mais recônditas do nosso país, constituindo um tremendo obstáculo não só ao desenvolvi- mento da nossa historiografia mas também à evolução das ciências sociais entre nós.

De acordo com autorizadas opiniões, é muito gravosa a falta de elementos informativos sobre a história da nossa agricultura em geral, incluindo a da região duriense, apesar de, como é sabido, ali ter sido constituída a primeira região demarcada do Mundo. Teria forçosamente que ser precária uma informação que assenta, essencialmente, nos interesses da classe dominante. Com efeito, quer a documentação elaborada em torno da polémica institucionalização da Companhia das Vinhas do Alto Douro, quer as pouco criteriosas monografias do Douro que se escreveram depois dos estudos realizados pelo Barão de Forester e pelo Visconde de Vila Mayor, padecem desta moléstia. Os primeiros, são denominados por dois tipos de teses que interessam a dois grupos da mesma classe: a que defende os privilégios da Companhia, é dirigida, quase sempre, por quem era favorecido pela venalidade dos provadores e classificadores dos vinhos; a tese, que atacava as “majestáticas prerrogativas”, era defendida por quem estava interessado no livre comércio, na especulação, no monopólio inglês (de facto) da comercialização e exportação do vinho fino.

Quanto às monografias, avulta nestas a lisonja dirigida aos grandes proprietários e a informação útil que dali se retira, resulta, quase sempre, da inventariação dos meios de produção que, em regra, são detidos pelas sucessivas gerações dos pioneiros do Capitalismo em Portugal.

Em face do vazio deixado por tais documentos e estudos, resta-nos procurar encontrar notícias dessa realidade socio-económica na Literatura. Mas também aqui o panorama é pouco animador, como se procura demonstrar no primeiro ponto deste trabalho.

As informações e imagens mais fidedignas sobre o Douro, começam a aparecer no primeiro lustro dos anos quarenta. Em 1943, é publicado o primeiro volume do “Inquérito à Habitação Rural”, valioso estudo que se debruça sobra a habitação rural do Minho, Douro Litoral, Trás-os-Montes e Alto Douro. Tendo sido promovido pelo Senado da Universidade Técnica de Lisboa, foi dirigido pelos professores Lima Basto e Henrique de Barros.

Em Setembro de 1943, chega Redol pela primeira vez ao Douro, em 1946, publica “Porto Manso”, em 1949, “Horizonte Cerrado” e quatro anos mais tarde, “Os Homens e as Sombras” e “Vindima de Sangue”.

Nestes quatro livros de Redol encontrei, finalmente, retratada a realidade social da região duriense. Seria isso mesmo que eu tentaria provar aqui, se o escasso tempo de que dispõe o trabalhador estudante o permitisse. Mas como não é possível, vou limitar-me a fazer uma breve e despretensiosa “leitura” de algumas páginas do romance “Porto Manso”, um dos livros mais realistas da obra de Redol. Esta “leitura”, que aparece no limiar (pouco auspicioso) duma nova era da navegação no Douro, não é feita pelo universitário serôdio que agora sou, mas pelo peregrino dos caminhos sinuosos do Douro que sempre fui.


1 - DE TORMES A PORTO MANSO

A grande falta de informação que existe sobre a região duriense deriva, em grande parte, da sua recôndita situação geográfica. O facto de ela se localizar a grande distância dos grandes centros de informação, a sua milenária carência de vias de comunicação e de outras infra-estruturas, constituíram, desde sempre, importantes obstáculos ao seu integral conhecimento, à sua conveniente divulgação e progresso. E se este problema ainda hoje existe, muito pior se apresentava antes do comboio ali fazer a sua aparição, na penúltima década do século passado.

Embora já alguns escritores quinhentistas – como João de Barros, André Resende e o próprio Camões – se tenham sentido na obrigação de referir o segundo maior rio que desagua em Portugal, suponho que antes do comboio ali chegar, o único escritor de nomeada que ali se deslocou foi Herculano, quando empreendeu a sua penosa e arrojada visita de estudos a Moreira de Rei. Uma vez ali, resolveu cavalgar mais alguns quilómetros para, do topo de um desfiladeiro espreitar o serpenteado rio. E tão impressionado ficou com a paisagem dantesca, que sentiu dores de cabeça. Mais tarde, já no aconchego de Vale-de-Lobos, com mais ânimo, escreveu: “A natureza, nas paisagens do Douro, empregou um pincel semelhante ao de Miguel Ângelo- foi robusta, solene e profunda”.

Tendo nascido em Freixo de Espada-à-Cinta, Junqueiro avistou-se milhares de vezes antes e depois da construção do caminho de ferro. Depois, na sua qualidade de proprietário da Quinta da Batoca (na Barca d’Alva) e de residente no Porto, atravessou a região duriense dezenas e dezenas de vezes. Mesmo assim, para além de “O Cavador” (que tanto pode ser um “pobre” duriense como doutra região qualquer), nunca foi além de coloridos “bilhetes-postais” como este: “Paisagem dura, escalvada e austera, uma paisagem bíblica em que o deus que ali fica bem é Jehová”.

Ramalho Ortigão viajou de comboio até à Régua e, depois de descrever um belo panorama que dali avistou, foi mais longe: cravou uma “farpa” curta no dorso da “Factory”.

Mais ninguém pintou o Douro com cores tão bizarras como o nosso celebrado Eça de Queiroz, nunca ninguém vislumbrou o que ele ali descobriu. Com efeito, a umas escassas três léguas a montante de Porto Manso, no eremitério de Tormes, descobriu ele o paraíso terreal digno do seu riquíssimo “hipercivilizado” e neurasténico Jacintinho.

Muito pode o “manto diáfano da fantasia!”

Duma hora para a outra, a simples encosta dum pequeno monte foi transformada na “serra bendita entre as serras” na “serra da fartura e da paz!”!

Este local paradisíaco não ficava a três léguas, mas a milhares de quilómetros do calvário onde penavam vidas sem pão, vidas que se confrontavam com combates milenários, sem alívio nem esperança. Ali, na terra da fartura e da paz, não haverá lugar para rendeiros espoliados, para dementes de fadigas, para mendigos. Com o Jacintinho só podiam coexistir, ali, amigos polidos e cultos como o Zé Fernandes e fiéis servidores que obedecem sempre de chapéu na mão.

Como se vê, alguns dos nossos mais notáveis escritores do fim do século passado e do princípio deste, continuaram a produzir uma literatura profundamente afectada pela romântica dicotomia cidade-campo, uma literatura que apenas teve “olhos” para fixar o pitoresco, o belo-horrível, o folclorismo. Nela não vislumbramos a realidade social que, até certo ponto, podemos encontrar condensada naquela notícia do barbeiro espanhol, inserta na Fastigimia e que diz:
“Allá en portugal, com sus viñas,
ellos biven muriendo de hambre,
rotos y desgarrados,
ansi bivieron sus padres
y han de morir sus hijos.“ (1)

Com efeito, as sucessivas gerações que se arrastaram, curtindo fomes, fadigas e desesperos sem conta, vítimas das constantes crises que resultam da procura do lucro fácil, penaram naquele calvário pelo menos durante dois séculos, sem que em letra de forma aparecesse uma denúncia a acusar e envergonhar os centros do Poder. Foi o próprio Poder, na pessoa do rei D. Carlos que, sem querer, desencadeou a primeira campanha de denúncias. Efectivamente, este monarca, já nos derradeiros meses do seu reinado, teve a ideia de ir estanciar, durante alguns dias em Pedras Salgadas. Quando menos o esperava, viria a ser surpreendido por uma enorme multidão de durienses que, numa grandiosa manifestação de silêncio, lhe acenou com bandeiras negras, símbolo da tremenda fome que então (como noutras ocasiões) grassava no Douro.

O Terreiro do Paço, alvoraçado com esta singular manifestação, acorreu, pressuroso, com os famigerados paliativos franquistas que, como era de esperar, não resolveram os problemas dos trabalhadores durienses.

Todavia, o “escândalo” tivera o condão de despertar os centros de informação. Assim, em meados de Janeiro de 1909, o jornal “O Século” enviou para a Região Demarcada o jornalista Adelino Mendes que, com as suas reportagens arrepiantes, realizadas entre 18 de Janeiro e 2 de Março, deixaria o País estarrecido. Nunca a informação dera notícia de miséria tão grande! E no entanto, já muitas outras crises se contavam no historial duriense, algumas delas ainda mais graves.

Pouco depois desta denúncia, veio a Revolução de 1910, o período de exaltação republicana e tudo voltou a ser o que dantes era. O Douro caiu mais uma vez na sua secular letargia, continuou a desfiar o seu interminável rosário de crises, de ruínas e de amarguras, sem que uma voz ou um dedo se erguesse para apontar as culpas de tantas colheitas de suores, de lágrimas e de fome.

Em 1943, aparece quem se mostraria determinado a mostrar as profundas feridas sociais existentes no Douro. Com efeito, é neste ano que é publicado o “Inquérito à Habitação Rural”, dirigido pelos professores Lima Basto e Henrique de Barros, que apesar das suas reconhecidas insuficiências, nos deixou aterradoras imagens em que viviam milhares de pessoas, imagens de vidas sem pão, sem conforto, sem alívio nem esperança. Apesar destes estudos terem sido promovidos pelo Senado Universitário da U.T.L., o braço negro da censura fascista só daria tempo a que se publicasse mais um volume dos inquéritos.

Do mesmo modo se goraram os projectos que, em Setembro de 1943, levaram Alves Redol pela primeira vez ao Douro. Abortaram os projectos de levar por diante a história de “O Trabalho em Portugal”, mas a viagem de Redol ao Douro não foi em vão. Efectivamente, desde que viu o Douro sentiu-se atraído “não só pela sua paisagem variegada, como pela riqueza dos tipos humanos. Conhecê-la do rio, em viagens feitas nos rabelos, vivendo com os seus marinheiros nos perigos dos “pontos” ou nas trágicas subidas feitas à sirga e à vara, é experimentar uma das mais vivas emoções que conto na minha vida emotiva.”(2)

- Donde lhe veio a ideia de escrever este romance?
-  “Da minha primeira visita ao Douro, em Setembro de 1943. Pensava então, talvez infantilmente, que depois do que vira sobre as dolorosas condições de trabalho em Portugal, em certas e mal conhecidas actividades nada veria de pior. Do que vira no Douro ficara-me a ideia de escrever um romance. Tinha tudo – ambiente, personagens, causa, acção. Fiel ao meu método – vim instalar-me na região em que vivem, sofrem e lutam as minhas personagens. Demorei algumas semanas em Porto Manso, ninho de barqueiros.” (3)

Quem viaja no comboio da Linha do Douro, umas centenas de metros antes do apeadeiro de Mosteirô, passa sobranceiramente a este “ninho de barqueiros”, que se espraia num recôncavo verde que, com Porto Antigo mesmo defronte, na outra margem, ladeia um maravilhoso meandro dos muitos que caracterizam o sinuoso rio. Vista do meio da encosta do monte Baião, a povoação de Porto Manso parece “um presépio bonito”.
“Vêm as casas pela vertente abaixo e espalham-se em ripanço, cautelosas umas, afoitas outras, por ruelas e largos, param à distância do rio e dali meditam, fincando os pés na areia doirada de uma praia, e envolvidas de sinfonias de árvores e frutos.” (pg. 28)

Umas centenas de metros mais a jusante, “aconchegada na costura de dois montes, a Pala brilhava ao sol, rodeada de laranjeiras, casa brancas num punhado, tendo aos pés até ao rio, uma tapeçaria verde, que as águas do Ovil não deixavam esmorecer.” (pg. 42)

Foi neste cenário surpreendente que Redol encontrou o ancoradoiro e as tocas das suas personagens. Pena foi que lá não tivesse ido também o talentoso mas discreto cineasta Manuel de Oliveira, pois em vez da curta-metragem “Douro, Faina Fluvial”, teria deixado para a posteridade uma maravilhosa e histórica longa-metragem. Começaria logo por fixar imagens que trinta anos mais tarde já seriam históricas. Com efeito, a maioria dos hortejos, dos laranjais e outros pomares que envolviam Porto Manso, bem como as que rodeavam a Pala e o punhado de casas brancas que constituíam o coração desta última aldeia, tudo isto viria a ficar submerso pelas águas da albufeira da central hidroeléctrica do Carrapatelo, construída escassos quilómetros a jusante. Se você, Manuel de Oliveira, tivesse feito outro tanto como fez Redol, munido dos seus instrumentos de trabalho, teria filmado um rio que se transformou e teria deixado imagens históricas da “era rabela” que findou, não com o comboio, mas com o aproveitamento hidroeléctrico do Douro Nacional.

2 – DOURO

“É um rio louco que abriu caminho em fúria
por entre montes gigantes (...)
É um rio sinistro de cor e trágico de loucura.
Parece que leva consigo as lavas de um vulcão,
tão espessas são as suas águas vistas de longe:
barrentas, com olhos verdes e laivos amarelos,
gritando nos pontos, como se quisessem atemorizar
os homens que ousam devassá-la.” (pgs. 61 e 62)

O Douro que Redol conheceu era, efectivamente, um louco, e louco logo à nascença pois, saído do ventre da serra, despenha-se fragorosamente nas escarpadas vertentes e só quando atravessa o planalto de Castela-a-Velha parece ganhar algum tino.

Mas desaustinado ou não, sempre correu orgulhoso dos seus areais louros e brunidos, das suas águas, cuja pureza milenária se ouve, ainda hoje, apregoada, de Urbion até Miranda, com seculares aforismos:
“Bebe del Duero
Por turbio que vaya!”
“Agua del Duero
Caldo de pollo.”

Dentro em breve, quando a central nuclear de Sayago funcionar, a pureza das águas e estes aforismos terão passado definitivamente à História.
Chegado a Paradela, torce para um rumo NE-SW e torna-se um rio internacional.

Antes da construção da série de barragens hidroeléctricas que vieram refrear a sua impetuosidade, corria aforçurado, espumando-se e bramindo furioso contra a penedia que o estrangulava. Cachoando de “salto” em “salto”, só voltava a amansar pouco antes de chegar ao acentuado encurvamento da Barca d’Alva. Descrevendo o cotovelo, muda ostensivamente para Ocidente, penetrando em território português.

A milenária fúria com que escalavrou o seu sinuoso caminho embateu, impotente, até finais de setecentos, com “hüa muy alta fraga” (4) que se situava a meio da dantesca garganta, entre “o penhasco agressivo de S. Salvador do Mundo” e as escarpas também graníticas de Campelos (na margem direita).

Esta “muy alta fraga”, represando as águas, fazia-as elevar consideravelmente, obrigando-as a despenharem-se em estrondosa catadupa, a que se dava o nome de cachão da Valeira. Este famigerado fragão, que só em finais do século XVIII acabaria por ser demolido, foi um intransponível obstáculo à navegação longitudinal para montante, e foi o responsável por um desigual desenvolvimento económico-social de terras duma mesma região, dando lugar à sua divisão em duas sub-regiões: Douro Superior, para Leste, até à Barca d’Alva e Alto Douro, propriamente dito, para Oeste, até Barqueiros (Mesão Frio).

Com efeito, enquanto no Alto Douro, desde o último quartel do século XVII, se foi progressivamente incrementando a produção de vinhos, uma agricultura capitalista, no Douro Superior manter-se-ia, por muito tempo, uma economia mais diversificada, muito menos dependente da vinha e com um regime de propriedade mais repartida.

Para além destes dois sectores, existe ainda um terceiro segmento denominado Douro Inferior ou Baixo Douro, que se estende para jusante de Barqueiros.

Foram estes dois últimos troços que Redol conheceu, no primeiro lustro dos anos quarenta, quando estagiando largamente quer no Pinhão quer em Porto Manso, viajou temerosa e abnegadamente nos rabelos, entre estas duas localidades e o Porto, tendo o assinalado ensejo de conhecer o Douro selvagem, arrebatado e fremente que já os antigos denominavam “rio de mau navegar” e que só na segunda metade da década de 50 começaria decisivamente a ser transformado no rio gordo e pacífico que hoje é.
“Babado de espuma nas galeiras, onde a morte espreita e os cachopos aguçados são punhais a desventrar barcos.” (pg. 61)
“Entre os mil e um escolhos que o Douro opunha aos seus navegantes, avultavam as terríficas “galeiras” ou “pontos”, alguns dos quais se caracterizavam por correntes rápidas entaladas entre recifes. Era aqui que “a água corria desencontrada, rodopiando em alucinações de espuma e ondulação.” (pg. 62)

Com estas quedas ou correntes rápidas, contrastavam as águas dormentes e remansosas (mas falsas), dos “pegos”, “poços” ou “fundões”, próprios dos locais onde a fractura da rocha fora mais profunda. Encaixados entre lapedos, os “poços” eram geralmente precedidos de rápidos, e a perigosidade de muitos deles residia nos grandes sorvedouros e medonhos redemoinhos, capazes de meterem a pique os maiores rabelos. Dos sete ou oito grandes “pegos” que mais atormentavam os “marinheiros” rabelos, aquele que Redol conheceu melhor era designado “Poço da Parede” e estendia-se, ao longo de cinco quilómetros, entre a “galeira” da Rapa e a celebrada Escarnida ( a jusante).

Por outro lado, as empinadas vertentes que se debruçam sobre o rio, apresentam-se sulcadas de ribeiros, ravinas e córregos que, durante as muitas e grandes trovoadas que acodem ao Douro, precipitam no já tormentoso caudal águas em turbilhão e o produto da erosão que provocavam nas ladeiras, dando lugar a numerosos “cones de dejecção”, formando os chamados “baixos ou secos”, as grandes “restingas” (bancos de areia e de calhaus), recifes imersos, “ínsuas” (ilhotas de areia), etc., que igualmente dificultavam a navegação.

Segundo alguns estudiosos (5), eram mais de duzentos os obstáculos que atormentavam a navegação desde o “Saltinho” (Freixo de Espada-à-Cinta) ao Porto. Muitos deles faziam perigar a vida dos navegantes, em toda a roda do ano. Isto porque, se uns eram muito difíceis de transpor, durante a estiagem, outros, por vezes, eram impossíveis de passar quando as águas iam altas.

Redol, demonstrando conhecer estes e outros escolhos que afligiam os barqueiros do Douro, faz referência aos mais significativos “pontos”.

A “galeira” mais a montante da Régua por ele repetidamente referida é a da “Cachucha” que, situada junto da foz do rio Távora, quando as águas iam altas, era a mais perigosa que a navegação encontrava desde a raia até à Régua.
“Em cada pedra há uma lenda ou o nome de um arrais que lá naufragou.” (pg.62)

A pena de Redol ligou as pedras da “Cachucha” aos náufragos do “Rocha” e do próprio “António do Monte”, quando o rio arrebatou, não só o barco, mas também a junta de bois que o puxava “à sirga”.

Raríssimos teriam sido os arrais que não deixaram o seu nome ligado a um dos recifes assassinos do rio cruel. Mesmo quem, como o “Antoninho do Porto Manso” (pai), “confiava no seu pulso, nos olhos e na sabedoria que tinha do rio, que até de olhos fechados seria capaz de conduzir um barca do Pinhão à Régua”, mesmo para quem, como ele, “não havia marca estranha, nem ponto ou carreira que a sua memória não guardasse” (pg.14) pode deixar de ver o seu nome ligado a uma das pedras assassinas do rio. Ao “Antoninho do Porto Manso” aconteceu o “desastre, na sua primeira falha de arrais”, (pg.13) quando passava “o Carreiro do Cadão com o “matriz” carregado com pipas de vinho da Ferreirinha.” (pg. 13)

O Cadão – grande queda ou quedão de águas rápidas – ficava a jusante da Régua. A sua enorme cachoeira, durante a estiagem, quase submergia os barcos que iam em sentido descendente, os quais eram obrigados a passar por entre dois grandes penedos muito próximos e submersos a que a marinhagem chamava “aguilhões”.

Mas se o Cadão era dos mais perigosos com o rio em baixo, a Bula – a amais temível “galeira” entre a Régua e o Porto – era perigosíssima quando as águas iam altas. Então, formavam-se grandes correntes de águas falsas, dornas ou sorvedouros, bulhos ou bulhões (que estão na origem do topónimo). Mas quando as águas iam baixas...
“- Nunca fiando. Na Bula de Fora Bonita já um barco da Régua lá ficou com água baixa.” (pg. 34)

Mas era com a água alta que se transformava num verdadeiro açougue de barcos. Disto, mesmo nos dá conta o Escritor, utilizando expressões características da linguagem rabela:
“O rio ia em baixo e a Bula não estava em cabeça; se o estivesse, o barco não passaria.” (pg. 277)

Com efeito, dizia-se no Douro: “Indo a Bula em cabeça é impossível a passagem dos barcos.” Isto é, quando as águas se aproximavam da “cabeça” do muro que a Companhia das Vinhas ali mandara construir para melhorar o “ponto”, tornava-se impossível transpô-lo. Para se fazer uma ideia da sua perigosidade, bastará dizer que, em alguns invernos e num só dia, ali se despedaçavam seis e sete barcos dos de maior lotação!

Redol refere-se ainda a outros locais naufragantes, como: o “Carreiro da Gorça”, em cujas proximidades localizou o “naufrágio” do Sebastião de Porto Antigo, o “Ponto do Feiticeiro”, a temível “galeira” da “Escarnida”, etc.. Detém-se demorada e criteriosamente no “Ponto Novo”, cuja cachoeira se apresentava como uma das mais impressionantes, tanto para as companhas que desciam como para as que subiam. A provar as dificuldades que este “ponto” apresentava, estava a existência do guincho que ali foi fixado para ajudar a “alar” os barcos. Mas quando Redol por ali passou, já esse aparelho se tinha partido, já não estava em condições de ser utilizado. Mesmo com o guincho muitos rabelos ali naufragaram!

Depois do “Ponto Novo”, onde “As borbulhas de água a espumar em redemoinhos, onde todos os outros sons morriam (...) estrangulados pelo fragor do pontp” (pg. 48), aparecia o “Ponto da Arretorta” (ou Retorta) “o último ponto até ao Porto que trazia perigo”. (pg.47).


3- FAINA FLUVIAL

Este Douro, tão eriçado de escolhos em meados do século XX, era ainda mais escabroso antes da realização de sucessivas obras hidráulicas levadas a cabo graças à Companhia das Vinhas do Alto Douro.

Quando Redol por lá andou, já estava em vias de desaparecimento os barcos que carregavam até 50 pipas, mas nos tempos altos da navegação no Douro, existiam muitos que comportavam 70, 80 e até 90 pipas.

Chamavam a estes barcos “matrizes”, e aos de menor calado “trafegueiros”. Eram aqueles que se destinavam à cabotagem entre Espanha, Trás-os-Montes e Alto Douro, Beira, Douro Litoral e o Porto. Os “trafegueiros”, mais utilizados na travessia do rio, só poderiam transportar vinho em sentido longitudinal, desde que fosse presente um “feitor” ou um “confidente”. (6)

Numa viagem entre o Porto e a Barca d’Alva (e até ao Saltinho, em Freixo de Espada-à-Cinta), um “matriz” utilizava os conhecimentos de quatro “mestres” ou pilotos, cada um deles exímio conhecedor de um dos quatro “acejos” em que se dividia o Douro navegável: “Águas da Régua”, para jusante desta vila; “Águas do Pinhão”, entre esta localidade e a Régua; “Águas do Tua”, do Pinhão à foz do Tua e “Fora de Marcas”, para montante desta foz até ao referido Saltinho.

Estes mestres revezavam-se quando atingiam o limite de cada “acejo”. Então, desembarcavam e aguardavam que viesse outro barco em sentido contrário, e assim sucessivamente. A esta faina dos “mestres” chamavam no Douro: “andar ao cambo”. E deveria ser tão antiga como a própria navegação neste “rio de mau navegar”, pois já Ruy Fernandes se lhe referia em 1532.

Redol também nos deixou uma amostra da faina de um dos derradeiros espécimes dos conceituados pilotos da “era rabela” quando, na parte inicial do seu prestimoso romance, nos apresenta imagens da última viagem descendente do barco de 50 pipas de António Monte. Quando nos mostra o orgulho ferido, o “vergonhaço” do último dos filhos e netos dos arrais do Monte, de precisar de “mestre” para lhe mandar nos homens, apesar de conhecer o rio como poucos, mas que lhe tomara respeito, depois que naufragara na “Cachucha”.

Quando a bordo, o “mestre” era quem dava rumo ao barco e ordens à tripulação: “O mestre alçou a vista, inclinando-se para a esquerda, ajudado pelo arrais e por dois marinheiros.
- Muito! Muito! Vai de ré!
E os homens gemiam com a espadela, como se receassem a vertigem da descida.
- Não se matem da vante! Não se matem muito!” (pg. 33)
 
Redol começa a descrever-nos a faina fluvial quando o barco descia o “Poço da Parede”, impelido, simultaneamente, pela força da corrente e dos remadores. Numa altura destas, só os que iam nas “apegadas” manobrando a “espadela”, seguiam atentos. O resto da marinhagem navegava descontraída, mesmo os esforçados remadores, os rapazes solteiros que se agarravam aos remos com mais vigor, porque se lembravam (das “febras”), das carícias e do vinho que os esperaram na Ribeira e na Rua Escura.

Longe das “galeiras” e da “sirga”, a companha tinha disposição e vagar para dichotes, para chalaças, para conversas sempre brejeiras, para pequenas picardias e até para descantes com a chula rabela.

Com Porto Manso à vista, o arrais tocou a buzina que “atroou como uma busa de fábrica, levando a mensagem do barco.” (pg. 34)

Quando os sons emitidos através da buzina se faziam ouvir nas aldeias dos pescadores, a criançada e as mulheres entravam em grande alvoroço, perante a expectativa de matarem as diversas fomes que quase sempre os apoquentavam.

Se dois barcos se cruzavam no rio, as companhas saudavam-se e inquiriam as mais diversas informações:
“- Adeus, ò Saraivão – gritou o Carita para o outro barco.
Os arrais saudaram-se, acenando os chapéus, e a marinhagem trocou dichotes.
- Muitos barcos na Ribeira?
- O poder do mundo, senhor Antoninho. E por esse rio abaixo é à formiga.
O Violas perguntou pelas raparigas da Rua Escura, aproveitando o ensejo para voltar à carga com os homens casados.” (pg. 35)

Para alegria dos solteiros e tristeza dos casados, a informação recebida reforçava a decisão de não pernoitarem em Porto Manso.

Durante a breve paragem na aldeia, enquanto “os marinheiros” casados afagavam os filhos e devoravam as mulheres com o olhar, enquanto o moço corria ao seu casebre a levar um naco de broa à mãe moribunda, os “homens sem companheira” tiravam a prova ao vinho fino que o barco transportava, para substituir a zurrapa que se bebia a bordo.

Depois do último adeus, o rabelo foi arrancado das margens à vara e depois os remadores levaram-no a percorrer o “Pego da Volta”, em cujas margens ecoavam os gritos do “Maldito”, que as fadigas e a miséria dementaram.

Pouco antes da “Escarnida”, o “mestre” acabou a faina, recebeu a soldada e desembarcou.

Estes mestres, como os “marinheiros”, não eram parte interessada no barco, que era propriedade do arrais. No tempo em que Redol navegou pelo Douro, um “mestre” recebia, em média, uma nota de 50$00 e de comer – mais 10$00 do que ganhava um “marinheiro” em cada viagem da Régua ao Porto e regresso.

O arrais, para além da obrigatoriedade de ter um livro onde registava as mercadorias que transportava, todos os anos tinha que se matricular, com o respectivo feitor e demais companha ajustada. Para tanto, assinava um termo em que se declarava a promessa de não tomar outros marinheiros nem outros mestres, nem outro feitor de proa (ou arrais de proa); e estes prometiam não desertar. (7)

A tripulação de um velho “matriz” era constituída por 15 ou 16 homens, que se empregavam em diferentes funções: arrais, feitor de proa, feitor de espadela ou braceador, 1.º, 2.º, 3.º e 4.º cabresteiros, vinhateiro, ponteador da pá dos dois, dos três e panteador das pás da ré. Havia ainda o moço que cozinhava e o responsável pelo vinho e pelos víveres na chileira era o vinhateiro ou fiel. (8)

Depois, com a decadência da navegação fluvial e o progressivo desaparecimento dos “matrizes”, os rabelos de 50 pipas não tinham uma tripulação superior a 9 ou 10 homens. Mas o arrais jamais alugou o seu barco e o frete das pipas era-lhe pago à unidade.

Como acontecia com outros grupos profissionais, a marinhagem do Douro tinha o seu calão ou gíria que, quem não fosse da região, muito dificilmente entenderia. Assim, quando entrava algum estranho a bordo com uma missão menos simpática, eles conversavam em gíria entre si, começando por designar o antipático intruso por “cão”.
Para o estudioso que hoje quisesse fazer uma recolha dessa gíria, teria muita dificuldade de ir além dos numerosos topónimos que deixaram no rio e das infindáveis alcunhas com que se “crismaram” dezenas de gerações.

O apodo que “crismou” maior número de durienses foi, sem dúvida, o de “rabelo”. Esta designação teve a sua origem na “espadela” ou “rabo” (leme) com que eram apetrechados os  respectivos barcos. Com o decorrer dos tempos, passou também a designar os barqueiros (e a sua gente) que habitavam em Barqueiros e em terras de Baião, na margem direita e nas povoações ribeirinhas dos concelhos de Rezende e de Cinfães. Não tomaram este apodo nem os barqueiros da Régua nem os de Castelo de Paiva – que desde sempre foi tida como pátria dos mais exímios barqueiros e arrais que navegavam no Douro.

Quase tudo isto nos aprece referido no curioso romance de Alves Redol. Mas retomemos de novo o fio da narrativa.
“Depois de o “mestre” desembarcar, o rabelo de António do Monte passou a “Escarnida”, limiar da “nova cavalgada de fragaredo”. A marinhagem, perante a proximidade do suplício do “Ponto Novo”, perdeu a boa disposição que até aí a animara. As piadas brejeiras, a chalaça e a chula, deram lugar à angústia, ao medo e à ansiedade: “O ruído crescia sempre. Rugia como uma catarata (...) ou um animal feroz que esperasse os barcos com ameaças. Desvairados, os remadores davam-se à faina com loucura, sabendo que só assim venceriam aquele inferno nascido do ventre do rio. Nada mais ganhava a sua atenção (...). O Carita não era capaz de assobiar, nem o Violas erguia a voz para um desafio aos camaradas.” (pg.48)
“Os rostos dos homens pareciam capazes de deflagrar em expressões de terror e gritos de medo”, quando a “galeira” se engasgava com o barco, escancarava as monstruosas goelas para o vomitar, depois, envolvido em espuma.”

Conforme Redol nos deixa perceber, os rabelos navegavam à vela, a remos e à vara. A vela era utilizada quando os ventos sopravam de feição. Mas, como o Douro é muito sinuoso, eles sopram, muitas vezes, caprichosamente e então, era necessário arrear as velas e recorrer às varas e/ou aos remos. Porém, nas “galeiras” onde a corrente era mais impetuosa, os barcos que seguiam em sentido ascendente eram levados à “sirga”. Quando o barco se mostrava impotente para vencer a força da corrente, a companha entrava em pânico e o arrais ou o “mestre” “cambavam” o rabelo para a margem. Encostado à borda, alguns marinheiros saltavam em terra e daqui atiravam a corda que amarrava o barco.

Se a carga dificultava o serviço de “sirgar”, a campanha “transfegava-a”, isto é, carregava-a às costas para fora de bordo. Depois, passava a “sirga” e as espias pelo “ginga-mochos” e lançava-as, também, para a margem. A bordo apenas ficavam o arrais, (o mestre) e o moço, o resto da companha, com a corda ao ombro ou com o peito enleado nela, ia penosamente puxando a “sirga”, suando e fincando os pés (e às vezes, as mãos também), arranhando-se nas arestas das rochas até sangrar e rouquejando em gritos cadenciados:
- Upa! Upa! Arriba barco! À tona! À tona!
- Ah, rapazes!
- Que leite a minha mãe me deu, carago!
- Puxa! Certo! Oh, puxa! Puxa!
“E rangiam como a espadela, falavam com ódio, vermelhos, olhos injectados de sangue.” (pág. 153).

Ao vê-los assim derreados num trabalho próprio para bois, muitos dos que mourejavam nas encostas, em obediência a um abominável costume, vaiavam-nos com desdém, de escravo para escravo:
- Eh, boi d’areia!
- Eh, pata rachada!
- Deixaste o teu pai no lameiro!...
- Oh, rabelo, coça a sarna!

Noutras situações os barqueiros responderiam “à letra”, mas assim, mortificados com o trabalho e com o perigo, recebiam os apupos amarguradamente, remoendo a afronta numa íntima revolta e murmurando muitas vezes:
“Bem fala quem está na areia;
Desgraçado de quem vai na veia.” (pág. 341)

Este serviço, além de violento, era perigosíssimo: ás vezes, a corda rebentava no meio do “ponto” e o barco, impelido para trás pela impetuosa corrente, quase sempre se despedaçava contra os recifes.

Quando as margens o consentiam, o penoso trabalho de “alar o barco à sirga” era feito por juntas de bois “paivotos” (de Paiva), a troco de 3$50 ou 4$00 (isto no tempo em que Redol andou por lá).

A impetuosidade das correntes de alguns “pontos” era tal, que os cabos retesados, batendo e roçando sempre nas mesma pedras, acabavam por fazerem sulcos com a largura do diâmetro dos cabos e com profundidades de muitos centímetros.

Para vencerem as forças destas correntes os bois retesavam os músculos até fazerem o rabelo galgar o “ponto” e ganhar o poço que ficava acima.
- Eh, boieiro!
- Galante, vá! Bonito, óó!...

Às vezes a violência das torrentes era tão grande que a força dos pobres bois não chegava para a vencer e iam de rojo, pelo chão, e se uma mão salvadora não aparecia a cortar a corda em terra, ou a soltá-la do barco, os animais mergulhavam no abismo e assim se perderiam com o rabelo, como “aconteceu” quando do “desastre” de António do Monte” na “galeira da Cachucha”.

Como foi dito, a luta contra os furores deste rio assumia variadas “nuances”, sendo também de destacar as situações em que os rabelos navegavam vertiginosamente ao encontro de terríficas cachoeiras. Quando os barcos desciam assim, às vezes, para melhor vencerem os “embalos”, os arrais ou os “mestres” mandavam “botar bordugos” – tábuas complementares estendidas ao longo dos bordos – e os barcos seguiam, mesmo assim, com apenas 30 ou 40 centímetros acima da água, pelo que, facilmente se alagavam e submergiam nessas medonhas cachoeiras.

Quando os rabelos se precipitavam desvairadamente ao encontro do abismo, o único freio era a espadela. Com efeito, toda a segurança residia nas mãos que agarravam os tornos do leme e nos ouvidos que seguiam com a maior atenção a voz de quem comandava o barco: o mais pequeno descuido, a menor descoordenação de esforços, poderiam provocar um naufrágio! Nestas situações, quem manobra o leme tinha que possuir grande capacidade de determinação e arrojo, tinha também que dispor de grande força física para poder vencer as águas revoltas que sacudiam e faziam rodopiar o barco. Se em tais circunstâncias não se conseguia dominar a espadela, o naufrágio era certo, a tragédia iminente.

Vejamos o que nos conta Redol:
“Num momento a espadela venceu-os e ambos caíram nas apegadas. Depois foi um gemido maior e um estalo seco, como se um raio tivesse fendido o barco. António do Monte ainda se quis erguer, mas a espadela arrancada foi perder-se no torvelinho das águas.
Na proa os remos pararam. (...) Os homens gritavam, esbracejando, agarrados uns aos outros, com os olhos tocados pelo assombro da morte. O barco rodopiou, uma vaga cresceu e varou a proa. Logo outra e outra. De bocas abertas, já sem gritos, os homens suplicavam de mãos erguidas, corriam de um lado para o outro e atropelavam-se, caiam e gemiam. E logo se levantavam, como se quisessem tapar o barco com o corpo para que as vagas o não inundassem.
- Barco perdido! Barco perdido!
- Senhora da Cardia!
- Senhora da Boa Viagem!
O rabelo ia descaindo, já inundado, e num repente estacou. Os marinheiros atiraram-se à Água, agarrados aos remos, e gritavam uns pelos outros, tentando alcançar as margens.
- Vá, arrais! Atire-se aqui, arrais!
- Vá, rapaz!
O moço amarinhou pelas pipas, mas, naquele instante, o empilhado da carga desfez-se e arrastou-o. Um grito avantajou-se (...) As pipas rolaram num furacão que se despedaçou à proa; ele ali ficou de braços abertos, esmagado, com uma expressão de espanto no olhar e um fio de sangue a borbotar-lhe do canto da boca.
O barco afundou-se. E a água veio raivosamente levar o fio de sangue.
Teria o seu nome lembrado no ponto da Bula, junto de todos os outros que ali haviam naufragado.” (pgs 287 e 288)

No tempo em que Redol viajou no proceloso rio, já há muito a navegação rabela agonizava. Mas durante dois séculos de desenvolvimento da agricultura capitalista duriense, até ao advento do caminho-de-ferro, para além do quase completo exclusivismo no transporte de produtos e mercadorias, ela desfrutou dum importante papel no tráfego de passageiros, quer nos que se movimentavam no Douro e regiões circunvizinhas quer, e nomeadamente, aqueles que se deslocavam aos grandes centros urbanos como Porto, Coimbra e Lisboa. E nas últimas três ou quatro décadas desta actividade, em apenas dois grandes naufrágios, pereceram mais de sessenta pessoas.

Segundo reza a tradição duriense, nunca um rabelo navegou entre o Porto e Barca d’Alva que não encontrasse diversos barcos naufragados!

Assim se compreende que, apesar da importância que o tráfego fluvial representou no desenvolvimento da sua economia, nunca o capitalismo tivesse chamado a si tão arriscada exploração.

Com a introdução e o desenvolvimento do capitalismo na agricultura do Alto Douro, foram tomando vulto alguns estaleiros que, em regra, se desenvolveram em locais que, antes, eram apenas simples “portelos” ou “surgidoiros” onde, quase sempre, existia uma secular tradição fluvial. Carvalho, Moledo, Porto Rei, Porto Antigo, etc., sempre foram povoações em que, para além da faina da pesca, sempre se desenvolveram os transportes fluviais, quer as antiquíssimas travessias das velhas barcas de passagem, quer o transporte, em sentido longitudinal, de simples viandantes, de mercadorias, de almocreves, de produtos e mercadorias.

Os mais importantes desses estaleiros desenvolveram-se em localidades como Barqueiros, Porto Antigo, Vimieiro, Castelo de Paiva, etc., porque, além de terras de barqueiros, ali tinham melhores acessos não só os fornecimentos de madeiras (pinho, castanho e carvalho), mas também os carpinteiros e os calafeteiros que ajudavam os “marinheiros” a construir os barcos para os respectivos arrais.
Todas estas circunstâncias e o facto de nas diversas localidades ribeirinhas existir mão de obra disponível, fizeram desta zona do Douro Inferior, situada imediatamente a jusante do Douro Vinhateiro, o centro de recrutamento dos “marinheiros” e dos arrais que o capitalismo necessitava para o temeroso transporte das suas mercadorias, nomeadamente do afamado “Port Wine”. E à medida que foi crescendo a exploração da “bottled sunlight” cresceu também um novo ramo da burguesia nortenha que se desenvolveu, quase sempre, servindo os interesses da burguesia britânica que, a partir da segunda metade do século XVII, se tinha fixado em Portugal e no Brasil para enriquecer depressa.

Alguns dos proprietários de “matrizes” viriam a conseguir não só a construção de uma parte das boas casas que existiam em diversas localidades do Douro Inferior, mas também viriam a fazer ordenar sacerdotes alguns dos seus filhos, enquanto a outros os transferiam para a nova burguesia urbana, a desempenharem trabalhos intelectuais não produtivos, como: juristas, docentes, médicos, etc.. De entre os arrais que enriqueceram, ficou na lembrança de todos o legendário José Inácio de Carvalho, que, além de possuidor duma das mais importantes frotas rabelas, foi ainda importante proprietário em Fontelas (Nespereira, Cinfães).
Mas a grande maioria das gerações de arrais, mesmo as mais notáveis como foram as dos Corteses, de Barqueiros e a dos Lodos, de Porto Manso, jamais se distinguiram pelo vulto dos capitais que deixaram, mas pela fama de valentões, pelo prestígio de grandes conhecedores dos segredos do “rio de mau navegar”, pelo orgulho dos arrais que nunca naufragaram. E para perpetuarem estes prestígios e orgulho, cada geração escolhia em regra, o filho “mais esperto” para herdar tudo isto através do barco – seu pendão de glória – e algumas leiras. Os últimos sucessores desta profissão tradicional, herdaram também um negócio ruinoso. Se o avô ou o bisavô de um qualquer António do Monte ganhava, “num ano afortunado”, 600 ou 650 mil reis (tanto quanto poderia custar, então, um rabelo devidamente apetrechado), o neto ou o bisneto viveram uma situação insustentável, porque perdiam dinheiro em cada viagem, porque não tinham possibilidades de sustentar um “matriz”. Mas nem mesmo assim se lhe poderá retirar “a dignidade” de burguês. Enquanto António do Monte manteve a propriedade do barco, o controlo do processo de trabalho (posse), a propriedade jurídica do rabelo, manteve essa “dignidade”, com a categoria de patrão activo, no sector de transportes.

O arrais do barco rabelo, tal como o pequeno proprietário de Riba-Corgo, sempre viveu abrasado com a sede de posse de algo que, acima de tudo, lhe conferia um “prestígio” que o dignificava aos olhos dos seus conterrâneos, que os elevava socialmente acima deles. E a este orgulho tudo sacrificaram: haveres, tranquilidade e, às vezes, a própria vida. Assim viveram gerações sem conta, sulcando, através de mil escolhos, a rota da quimera.



NOTAS
(1)   Vidé Tomé Pinheiro de Veiga, FASTIGIGIA, pág. 354.
(2)   Entrevista concedida a Francisco Tavares Teles, para a revista do Clube Transmontano de Angola, em 1948, vidé Charrua em Campo de Pedras, pág. 51.
(3)   Entrevista concedida a Juliano Ribeiro, para o jornal “A Tarde”, de 21 de Fevereiro de 1945. Vidé Charrua em Campo de Pedras, pág. 50.
(4)   Vidé Descripção dos Arredores de Lamego – V volume da Academia Real das Sciências de Lisboa (indicado na bibliografia) pág. 565.
(5)   Vidé Imagens e Legendas do Minho e Douro, pág. 42.
(6)   Vidé “O Barco Rabelo”, pág. 48.
(7)   Idem, pág.84.
(8)   Idem, pág. 83.

BIBLIOGRAFIA (Principais livros consultados)
Redol, Alves, Porto Manso, 2.ª edição, Lisboa, Inquérito, s/d.
Teles, Francisco Tavares, “Alves Redol no Douro”, in MENDES, José Manuel, Charrua em Campo de Pedras, Lisboa, Seara Nova, 1975.
Pinheiro Torres, Alexandre, Os Romances de Alves Redol, 1.ª edição, Lisboa, Moraes Editora, 1979.
Salema, Álvaro, Alves Redol a Obra e o Homem, 1.ª edição, Lisboa, editora, Arcádia, 1980.
(V volume) Academia real das Sciências de Lisboa, Colecção de Inéditos da História Portuguesa, 2.ª edição, Lisboa, Imprensa Nacional, 1936.
Dias, Augusto, Lamego no Séc. XVI, 1.ª edição, Régua, Edições “Beira-Douro” 1947.
Silva, Joaquim Oliveira da, Imagens e Legendas do Minho e Douro, Edição do Autor, Porto, 1942.
Mattos, Armando de, O Barco Rabelo, edição da Junta de província do Douro Litoral, Porto, 1940.

Zeca do Porto